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A escritora francesa Annie Ernaux, ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura, em dezembro de 2022 (à esquerda); Procissão sindical da CGT em Paris, 7 de março de 2023 (à direita). (Tim Aro / TT News Agency / AFP via Getty Images; Samuel Boivin / NurPhoto via Getty Images)

Annie Ernaux se reuniu com trabalhadores franceses para defender suas aposentadorias

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Tradução
Gercyane Oliveira

Nos últimos dias, a França foi abalada por greves contra a proposta de Emmanuel Macron de aumentar a idade da aposentadoria. A escritora ganhadora do Prêmio Nobel, Annie Ernaux, encontrou-se com grevistas em uma estação ferroviária de Paris para discutir como o trabalho tem sido desvalorizado.

Em fevereiro, o Le Monde Diplomatique publicou um texto da escritora Annie Ernaux intitulado “Walking Tall Again”. Nele, a ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura de 2022 lembra suas memórias do movimento social de 1995 contra o plano de reformar as pensões do então Primeiro-ministro Alain Juppé.

Ela também se refere ao sociólogo Pierre Bourdieu, que assumiu a causa dos grevistas: “O compromisso político de Bourdieu com a greve me fez ver meu dever como escritora de não permanecer uma espectadora passiva na vida pública. Ver este sociólogo reconhecido internacionalmente se envolver em conflitos sociais e ouvi-lo foi uma imensa alegria, uma libertação”.

Quando Damien Iozzia, supervisor e secretário do sindicato UFCM-CGT (que representa o corpo ferroviário em cargos de gestão e supervisão) na estação Montparnasse de Paris, leu seu texto, ele o viu como “um convite para pedir a Annie Ernaux que viesse aqui”. Ele entrou em contato com o editor da Gallimard para sugerir que a autora viesse e falasse não apenas com os trabalhadores que se mobilizaram na estação ferroviária nacional da SNCF (Société Nationale des Chemins de fer Français, uma das principais empresas públicas francesas), mas também com um funcionário do setor de energia.

No dia 14 de março, antes do oitavo dia de protestos contra a reforma de Emmanuel Macron, elevando a idade mínima de aposentadoria de 62 para 64 anos, a escritora apareceu em um pequeno hall sindical na estação de Vaugirard, a um metro e meio da Montparnasse. A sala se agita ocasionalmente enquanto os trens passam. Ela estava acompanhada de amigos — os sociólogos Jean-Marc Salmon e Didier Eribon e o editor e escritor Jean-Marie Laclavetine.

Ernaux tinha aceitado o convite sem hesitar: “Os compromissos que sempre tive, continuo cumprindo”, ela nos disse alguns minutos antes da reunião, sublinhando a ausência gritante de intelectuais e artistas que se comprometeram com os trabalhadores mobilizados neste movimento. Ao redor da mesa, todos estão em greve desde 7 de março.

Este artigo, do jornal francês Libération, relata uma conversa que durou quase duas horas. Foi uma discussão não só de previdência, mas também sobre o trabalho (observando também que os dois temas estão ligados intimamente), do significado que perdeu e da destruição do serviço público.


ANNIE ERNAUX

Estou aqui porque acho que a reforma de Macron é a pior injustiça que pode ser feita às pessoas, tirando anos de suas vidas. Pegarei um exemplo pessoal. Eu me aposentei do sistema educacional aos 60 anos de idade. Aos 62 anos, descobri que eu tinha câncer de mama. Então, eu poderia ter morrido exatamente aos 62 anos.

Pensar que as pessoas vão morrer mesmo antes de se aposentar é uma verdadeira violência. Nem todos temos as mesmas condições de trabalho, e acrescentar dois anos é um ataque à vida. Estamos aqui na Terra simplesmente para alimentar — usarei o termo sujo — o capital? Estou aqui para ouvir, porque normalmente há um grande silêncio sobre o mundo e a realidade do trabalho.


STÉPHANE CORTEZ

Trabalho por turnos há mais de 30 anos. É ótimo ver você e sentir que há pessoas interessadas no nosso mundo do trabalho. Quando Damien [Iozzia] me falou sobre isso, pensei em uma coisa: não sei em que ponto da empresa fui designada como uma “número menos 1” (inferior direta). Eu nem me dei conta disso. Sou o número menos 1 de alguém. É isso que significa ser empregado agora?


MATHIEU LAMBOURDIÈRE

Estou com a SNCF há nove anos. Vi uma mudança em 2016. Desde então, passei por três reorganizações, cada vez com cortes de pessoal. Até mesmo a administração mudou. Antes, tínhamos gerentes que vinham de baixo para cima, que haviam passado nos exames competitivos. 

Hoje, eles aboliram a maioria dessas oportunidades. As pessoas com alta responsabilidade muitas vezes vêm das escolas ou, quando são escolhidas internamente, são escolhidas por sua capacidade de aplicar exatamente a política da empresa.

“Pessoas aposentadas que têm tempo para fazer o que querem muitas vezes começam a escrever textos e poemas. Hoje, temos a sorte de ter uma IA que escreve poemas para nós, enquanto temos que trabalhar mais.”

Uma vez que o inspetor do trabalho concordou com os sindicatos que um memorando da gerência era ilegal. Os gerentes vieram até nós e disseram: “Você tem que aplicá-lo”. Na SNCF, temos a sorte de ter um ativismo operário que nos protege um pouco, mas ainda estamos sofrendo esta mudança.


DAMIEN IOZZIA

A verdadeira mudança é ideológica e remonta a cerca de quinze anos atrás. Houve um momento decisivo na maneira como a SNCF, ou melhor, as SNCFs, foram gerenciadas. Porque agora existem cinco empresas SNCF, cinco sociedades limitadas. Aqui, ao redor da mesa, somos quase todos ferroviários, mas não temos todos os mesmos patrões. Há quatro patrões diferentes. Embora todos trabalhemos no mesmo lugar, todos com o mesmo objetivo: fazer funcionar os trens. Na Montparnasse, há doze equipes gerenciais diferentes. Portanto, quando se quer questionar a gerência, é preciso saber qual deles questionar!


VINCENT BENABEN

Acho que foi [o político comunista francês] Ambroise Croizat que disse: “Estamos defendendo o direito à vida”. Quando se chega à aposentadoria, é o primeiro momento em que se está completamente livre. Além disso, as pessoas com tempo para fazer o que querem, muitas vezes começam a escrever textos e poemas. Hoje, temos a sorte de ter uma inteligência artificial que escreve poesia, enquanto temos de trabalhar por mais tempo. Quando as coisas poderiam ser o oposto.


MATHIEU LAMBOURDIÈRE

Sobre tecnologia: um camarada disse algo realmente interessante ontem. Seu sogro, um trabalhador ferroviário, disse-lhe que quando chegaram os primeiros trens de alta velocidade, isto foi apresentado a ele como um avanço, o que lhe permitiria fazer suas viagens entre Paris e Rennes na metade do tempo.

Ele disse: “Então eu trabalharei duas vezes mais e receberei o mesmo pagamento”! Seu chefe disse: “Bem, não”. Mas seria apenas lógico que nossas sociedades evoluíssem em direção a isso. Um dos argumentos do governo para aumentar a idade da aposentadoria é que todos estamos vivendo mais do que antes.

Mas sob que fundamento devemos dar esses anos extras ao patrão?


CATHERINE FLÉCHARD

Como sindicalista, a vida não é fácil, especialmente durante os últimos 20 anos. Antes, a luta era em termos muito mais saudáveis. O desmantelamento dos serviços públicos e todas essas novas formas de organização do trabalho significam que, em certo momento, todos precisamos ficar juntos. No setor de energia, estamos nos perguntando, por exemplo, a questão da abertura às reuniões com os funcionários da concorrência. Temos que abrir nossas mentes para estarmos prontos para fazer isso.

Podemos começar a ganhar novamente. Lá, ganhamos muito com os salários. Mas já estamos levando uma surra há algum tempo. Ainda estou muito otimista, porque também estamos vendo novas gerações que não têm formação política e que estão nos ajudando.


DAMIEN IOZZIA

Quando cheguei em 2015, ainda existiam 70 balcões de bilheteria. Tudo desapareceu, foi substituído por um lugar onde se tem dois ou três colegas de pé, com tabuletas, fechando ao redor de pessoas completamente perdidas. Chama-se “autoatendimento acompanhado”. Esses agentes de vendas, com um certo conhecimento e apresentados como uma parte essencial do processo, sentem que foram rebaixados.

Eles se sentem completamente inúteis. Além disso, eles não foram todos mobilizados durante a greve. Porque eles nos dizem: “É inútil para nós, se entrarmos em greve, ninguém vê isso”. A empresa tirou-lhes a possibilidade de contribuir com sua experiência.

É devastador. Destrói o trabalho deles. Também tenho em mente todos aqueles colegas que passam o dia atrás de portas que apitam e cujo único valor agregado é garantir que não haja problemas. De que adianta levantar pela manhã mais dois anos, só para fazer isso?


ANNIE ERNAUX

É interessante porque, do meu ponto de vista como usuária, sou completamente incapaz de comprar uma passagem pela internet. O site da SNCF é mortal. Antes, havia funcionários que nos davam informações. Você também pode comprar seu bilhete anual de férias… Em Cergy, esta instalação desapareceu; é impossível comprar um passe na bilheteria para ir de Paris a Marselha. Não pensamos na desordem que isto causa às pessoas. É importante ver o que aconteceu com o trabalho.


CATHERINE FLÉCHARD

É isso aí. A manipulação do funcionário começa a partir do seu trabalho, tornando-se um disparate. Foi assim que perdemos os serviços públicos. O que Damien disse sobre a SNCF também se aplicava ao setor de energia. Estas pessoas estão totalmente indignadas. Eles são constantemente confrontados com o descontentamento do usuário. Estas são pessoas que não são mais vistas em batalhas.


SOPHIE LECOINTRE

Cheguei em Montparnasse no escale [um ponto onde os agentes da estação informam e dirigem os passageiros]; trabalhei no escritório de passageiros — o serviço pós-venda. Lidamos com vários problemas dos passageiros. O plano da nova gerência era fechar este escritório. A partir de então, tudo na estação desmoronou. As bilheterias começaram a desaparecer. Agora, para encontrar um agente, é preciso passar por um centro comercial.

Hoje, estou no controle, portanto, no final da viagem do cliente. Estamos sujeitos a tudo, toda sua raiva, sua revolta, e eu os ouço, eu os entendo porque vivi tudo isso, todos esses fechamentos, todas essas mudanças. Não queríamos isso, mas nossa gerência disse: “Sim, mas não funciona, há muita espera, é mais fácil ir e comprar na internet”.

Mas, na verdade, não. Ninguém pediu isso: foi imposto a nós. É como todos os serviços públicos: para quebrá-los, eles primeiro dizem serem impraticáveis. Mas um serviço público deve continuar sendo público; não estamos aqui para ganhar dinheiro. E, além disso, onde está nosso dinheiro? Para onde ele foi? E agora estamos sendo obrigados a cumprir mais dois anos? Eu não concordo.


ANNIE ERNAUX

Ao ouvi-lo, entendemos ser impossível separar o problema da aposentadoria aos 64 anos das condições de trabalho. A questão aqui é trabalho, e temos que fazer a pergunta ao mesmo tempo em que continuamos a greve. Como aposentada, não posso dizer isto, mas acho que só a luta vale a pena.

Este diálogo que tivemos foi importante. Aprendi muito sobre a SNCF, ou o que costumava ser chamado de SNCF, e o que constituía estas grandes empresas públicas como a National Education, a French Electricity (EDF), os Correios… Em Cergy, os principais correios fecharam. Agora, os correios estão no centro comercial de 3 Fontaines. E ele segue o horário comercial. Este é um exemplo típico.


DAMIEN IOZZIA

Sua presença é mais do que simbólica. Para nós, o que é importante é poder nos firmar na realidade. E quem mais, senão você, poderia ter dito isso? Hoje temos sorte de que pessoas cujas vozes são ouvidas venham nos ver. A coisa mais difícil em nossa vida é que as pessoas saibam o que estamos passando.

Sobre os autores

Annie Ernaux
é uma autora francesa e vencedora do Prêmio Nobel de Literatura em 2022.

 

Stéphane Cortez
é gerente operacional da SNCF e membro do sindicato da CGT.

 

Catherine Fléchard

 trabalhou por quarenta anos como agente de atendimento ao usuário na EDF (Eletricidade Francesa) e agora é funcionária do sindicato CGT Energie em Paris.

Mathieu Lambourdière
é trabalhador ferroviário e gerente de recursos, planejamento de motoristas, membro do sindicato CGT e representante da equipe em Paris-Montparnasse.

 

Sophie Lecointre

 é inspetora de passagens da SNCF desde 2008 e é sindicalizada da CGT.

Damien Iozzia

 é supervisor e secretário do sindicato UFCM-CGT em Paris-Montparnasse.

Vincent Benaben

é ferroviário, gerente de recursos da SNCF, membro do sindicato UFCM-CGT em Paris-Montparnasse e secretário da CGT UL no 14º arrondissement de Paris.

Cierre

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Published in Análise, Austeridade, Entrevista, Europa, Legislação and Trabalho

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